sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A INTERPRETAÇÃO DO PATRIMÔNIO COM COMUNIDADE: UM PROCESSO HISTORIOGRÁFICO COLABORADO


FARIAS, Eny KLeyde Vasconcelos Farias. (2010). Maria Felipa de Oliveira – Heroína da Independência da Bahia. Salvador: Quarteto, 148p.

Eny Kleyde Vasconcelos Farias


A Interpretação do Patrimônio com Comunidade: um processo historiográfico colaborado. y
                                                                             Ricardo Ottoni Vaz Japiassu *












“A Bahia se apressou em esquecer Maria Felipa, mulher, negra, pobre e pescadora. Não foi apresentada nos livros didáticos, nem nas comemorações do Dois de Julho, mas, apesar de quase dois séculos de construção do esquecimento, a voz heróica de Maria Felipa não se calou na memória insulana” (p.39)


Maria Felipa de Oliveira – Heroína da Independência do Brasil é o livro mais recente da professora-pesquisadora Eny KLeyde Vasconcelos Farias, Mestre em Educação pela UFBa. Trata-se do relato dos resultados obtidos com os estudos acerca de Maria Felipa – heroína da Independência da Bahia, ativista negra que teve papel decisivo nas batalhas pela consolidação do Império brasileiro travadas na ilha de Itaparica, ponto geograficamente estratégico para o abastecimento de víveres às tropas portuguesas sob o comando do General Madeira de Melo que se encontravam “sitiados” em Salvador pelos batalhões leais à Dom Pedro I.

A partir de rigorosa pesquisa documental, iniciada em 2002, a professora Eny consegue exitosamente colaborar dados que interconectam fontes da historiografia tradicional às contribuições críticas e interpretativas da memória afetiva sociocultural dos independentistas durante a Campanha da Bahia.

Prefaciado pelo Prof. Dr. Ubiratan Castro de Araújo e precedido por uma introdução da pesquisadora, o material encontra-se organizado em dois grandes capítulos ao fim dos quais são apensados importantes anexos, relação das fontes documentais, lista de informantes e depoentes sendo finalizado pela apresentação honesta das referências citadas ao longo do texto.

O livro é uma espécie de “mosaico” (patchwork) de evidências do protagonismo de Maria Felipa de Oliveira nas lutas pela Independência do Brasil, e vem somar-se ao clamores dos itaparicanos pela justa inclusão de Felipa no panteão dos heróis do Dois de Julho e recuperação da memória da participação dos povos afro-descendentes e ameríndio-descendentes na instituição do Estado brasileiro.

Nas sete páginas da Introdução a pesquisadora apresenta os limites e desafios colocados ao resgate de relatos que, excluídos da historiografia abstrata, resistem às políticas hegemônicas de “esquecimento” através de tradições orais e práticas simbólicas sinalizando a urgência de reparação dos danos à memória imaterial do patrimônio de coletivos que subrepticiamente é “esquecida” pelos processos de registro historiográfico hegemônicos porque “a história tradicional pesquisa ‘estadistas’, ‘generais’ e ‘eclesiáticos’ “ (p.32).

O Primeiro Capítulo possui vinte e oito páginas dedicadas à exposição dos procedimentos metodológicos da singular abordagem desenvolvida pela autora consignada Interpretação do Patrimônio Com Comunidade, uma modalidade do Método de Observação Participante ou Pesquisa Participante (MAY, 2004)[1] originalmente usado nos estudos etnográficas de natureza qualitativa da Antropologia e Sociologia (André e Lüdke, 1986).[2] Nele, a pesquisadora denuncia as lacunas a serem preenchidas por posteriores estudos numa perspectiva hermenêutica dialógica voltados para a recuperação e empoderamento da memória coletiva de grupos sociais tradicionalmente silenciados pelas elites intelectuais justificando sua opção teórico-metodológica pelo compromisso de “escrever sobre aqueles que historicamente representam as ‘maiorias sem nome’ ” (p.35).

O Capítulo Segundo é o mais extenso do livro e subdivide-se em sete subitens que tratam de expor as escassas evidências históricas sobre os feitos de Maria Felipa de Oliveira alocando-os pertinentemente na diacrônica sequencial dos relatos da historiografia oficial. Merecem destaque o incêndio e explosão da barca Constituição com 350 marinheiros e 15 canhoneiras, por mulheres e pescadores liderados por ela, armados com burlotes contendo chumbo e pólvora, em 14 de outubro de 1822 e, posteriormente, sua inteligente coordenação de ações bélicas pela incansável participação na batalha corpo a corpo da praia do Convento, que selou definitivamente os ataques portugueses à ilha de Itaparica em 07 de janeiro de 1823 (Data magna da ilha de Itaparica). Também os “causos” e histórias pitorescas que compõem o imaginário coletivo preservado em memória oral dos insulanos (itaparicanos) sobre a entidade Maria Felipa (surras de cansanção nos soldados, atitudes impertinentes, habilidades no manejo de armas brancas e excelência na prática da capoeira etc).

A  pesquisa da professora Eny, como ela mesma diz, é um clamor pela preservação do patrimônio histórico-cultural Maria Felipa de Oliveira  e “deve ter continuidade em suas manifestações, tomando o ano de 2010 como um novo ponto de partida para a preservação da memória na perspectiva da cidadania” (p. 51).

Os limites da investigação, colocados pela precariedade de fontes que reúnem registros da memória coletiva não hegemônica, absolutamente, não comprometem a belíssima narrativa autoral na colaboração dialogada de dados, via Interpretação do Patrimônio Com Comunidade efetuada - a não ser para o mau-humor intolerante dos adeptos de concepções do rigor acadêmico que menosprezam pesquisas que ousem ir além das fronteiras das tradicionais narrativas científicas ou ideologicamente comprometidas com o silenciamento das “maiorias sem nome”.

O modo “pós-moderno” de desenvolvimento da argumentação pode causar “estranhamento” aos familiarizados com a lógica das narrativas modernistas, aprisionadas à uma lógica sequencial “aristotélica”. Mas o efeito dos saltos (ir e vir) no “passeio” pelos documentos recolhidos pela autora confere dinâmica e vivacidade típicas do paradigma hipertextual ou rizomático predominante na contemporaneidade - que sustenta a operacionalidade das redes telemáticas (GOMEZ, 2004). [3]

O livro deve ser referência obrigatória nos estudos aprofundados sobre a História do Brasil e da Bahia e servir como andaime para edificar novos patamares no empoderamento de abordagens qualitativas às problemáticas socioculturais.
 
Referências
ANDRÉ. Marli & LÜDKE, Menga. (1986). Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU.
GOMEZ, Margarita V. (2004) Educação em rede – uma visão emancipadora. São Paulo: Cortez.
MAY, Tim (2004) Pesquisa social – questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed.






y Resenha crítica publicada em OBSERVE http://www.observecult.blogspot.com

* Doutor em Educação e Psicologia, mestre em Artes Cênicas/Teatro pela USP, licenciado e bacharel em Teatro pela UFBa. E-mail: rjapias@yahoo.com.br

[1] MAY, Tim (2004) Pesquisa social – questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed.
[2] ANDRÉ. Marli & LÜDKE, Menga. (1986). Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU.
[3] GOMEZ, Margarita V. (2004) Educação em rede – uma visão emancipadora. São Paulo: Cortez.

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